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Workshop: Winsor McCay

O 5º módulo do Workshop integrado de BD na Kingpin Books tem sido dedicado à análise de autores marcantes, desde os mais clássicos aos contemporâneos. A primeira dessas dissecações foi elaborada pelo Nuno Lopes sobre Winsor McCay, e tenho o prazer de aqui transcrever o texto completo:

E Então Surgiu McCay!
Texto de Nuno Lopes

Como surgiu a banda desenhada tal como a conhecemos hoje? Quem foi o pioneiro neste meio de contar histórias, que de entretenimento popular para jovens rapazes, se tornou na chamada 9ª arte? Desde o tempo em que os nossos antepassados viviam em cavernas, que o ser humano desenhava figuras com o propósito de comunicar; os egípcios deixaram-nos os hieróglifos, cujas figuras dispostas sequencialmente transmitiam mensagens . Mas quando foi que se iniciou o método de conciliar desenhos e palavras interligados para narrar uma história? A quem se deve tão engenhosa criação? Caros leitores e leitoras, apresentamos o pai da banda desenhada tal como a conhecemos: Winsor McCay!

Antes de McCay, já outros autores criavam histórias conciliando imagem e palavras, como Rodolphe Topffer (Histoire de Mr Jabot, 1833) ou Wilhem Busch (Krischan Mit Der Piepe, 1864). Estas histórias caracterizavam-se por serem ilustrações dispostas de forma sequencial, com o intuito de apresentar uma narrativa; legendas debaixo de cada vinheta resumiam a narrativa e também apresentavam o diálogo das personagens. E então surgiu McCay! A sua grande inovação foi a introdução de balões de diálogo dentro da própria vinheta, associados a cada personagem que intervinha verbalmente. Para além disso, McCay inovou no modo de transição narrativa entre vinhetas e até no próprio formato das vinhetas. É por estas razões que se diz que Winsor McCay foi o pai da banda desenhada, tal como a conhecemos hoje.

Zenas Winsor McCay nasceu na segunda metade do século XIX. A data exacta do seu nascimento reveste-se de incerteza: ele dizia ter nascido no Michigan em 1871; a sua lápide diz que nasceu em 1869; segundo alguns historiadores de animação, terá nascido no Canada em 1867. Ainda hoje não se sabe ao certo nem o local, nem a data exacta de nascimento de McCay. Zenas era o nome do patrão do pai de McCay e seria mais tarde abandonado por Winsor. Desde cedo revelou talento para o desenho, mas o seu pai tinha planos diferentes para ele. Enviou-o para Ypsilanti, no Michigan, para que o filho aprendesse a gerir negócios. Mas a paixão de McCay era desenhar e era assim que queria ganhar a vida. Trabalhou em dime museums desenhando retratos e era de tal modo bom observador e rápido a desenhar, que se tornou bastante apreciado. A única formação em arte que teve foi com John Goodison. Goodison era um antigo tintureiro de vidros e influenciaria o uso de cor e perspectiva de Winsor McCay. Trabalhou como ilustrador para várias publicações (quer no Michigan, quer depois em Chicago). As suas primeiras tiras foram Tales of the Jungle Imps by Felix Fiddle, publicada em 1903, no National Enquirer; as histórias eram acerca de criaturas da selva e a forma como se adaptavam ao ambiente hostil.

Antes de criar a sua obra-prima, Little Nemo in Slumberland, em 1905, criou em 1904 Little Sammy Sneeze e Dream of a Rarebit Fiend (este último assinado com o pseudónimo Silas, devido a exigências editoriais). Little Nemo in Slumberland conheceu grande sucesso, tendo sido adaptado à Broadway. McCay foi também um pioneiro no cinema de animação, concebendo filmes de Little Nemo (1911), How a Mosquito Operates (1912) e Gertie, the Dinossaur (1914). Gertie é considerada por vários historiadores do cinema de animação como a primeira personagem animada criada especificamente para filme a ter uma personalidade única e realista. McCay também foi autor de cartazes de propaganda patriótica (alguns de incentivo às forças americanas que participaram na Iª Guerra Mundial). Morreu em 1934 e deixou um legado que influenciaria vários autores e artistas, como Walt Disney ou Moebius.

Sendo um artista à frente do seu tempo, Winsor McCay influenciou mais artistas do que aqueles por quem foi influenciado. Entre os autores que influenciaram a sua obra contam-se Lewis Carroll e James M. Barrie. Em termos de correntes artísticas, notam-se as influências de Art Nouveau e do Surrealismo – esta mais visível nas tiras Dream of a Rarebit Fiend e Little Nemo in Slumberland. Também as teorias de Sigmund Freud tiveram uma grande influência nas tiras de McCay passadas no mundo dos sonhos. Foi a vontade de experimentar, de variar na forma como contava as suas histórias, que levou McCay a criar a banda desenhada como a conhecemos hoje.

Em Little Nemo in Slumberland, unanimemente considerada a sua obra-prima, é possível constatar as marcas características do brilhantismo de Winsor McCay. Little Nemo tinha como protagonista um menino chamado Nemo que viajava até ao mundo dos sonhos (Slumberland), cada vez que sonhava. O rei Morfeu enviava mensageiros para conduzirem Nemo ao seu palácio, pois a filha do rei sentia-se triste e requeria a presença do pequeno Nemo para brincar com ela. O problema é que cada vez que Nemo tentava chegar ao palácio do rei do mundo dos sonhos, algo acabava por correr mal e Nemo acabava por acordar bruscamente (umas vezes caindo da cama, outras acordando aos gritos). Cada tira de Little Nemo in Slumberland mostrava uma aventura de Nemo no reino dos sonhos e as suas tentativas para chegar ao palácio do rei Morfeu.

Devido ao seu universo onírico, encontramos em Little Nemo diversas situações bizarras e personagens irreais. O mundo dos sonhos é maravilhoso, mas também pode ser violento e assustador. No entanto, Little Nemo in Slumberland era dedicado às crianças, não sendo tão perturbador como Dream of a Rarebit Fiend – esta tira explorava o mundo dos sonhos numa vertente mais próxima dos pesadelos, envolvendo deformações, desmembramento ou morte. Apesar da acção de Little Nemo se desenrolar no mundo dos sonhos, há uma prevalência da realidade – por isso as histórias terminam com Nemo a acordar, muitas vezes de forma brusca (cai da cama). Em diversas tiras, os diálogos da penúltima vinheta eram diálogos de transição para a realidade, na qual Nemo chamava ou era chamado por um familiar (a mãe, o tio, o pai) em sonho, estando o mesmo a acontecer na realidade e sendo mostrado na última vinheta. A influência de Freud é visível, por exemplo, no facto das perturbações do inconsciente (os sonhos) terem explicações na realidade: o pai ou a mãe que repreendem Nemo por ter comido antes de dormir.

O mundo dos sonhos em Little Nemo in Slumberland adquire maior relevo através do uso de cores vivas e em termos de perspectiva: McCay era um mestre no uso de perspectiva, conseguindo transmitir na perfeição a noção de espaço amplo e vasto. O domínio perfeito do ritmo e do movimento conferiam às suas histórias um dinamismo singular, permitindo contar histórias que, apesar de curtas (apenas uma página), eram bem estruturadas narrativamente – como a sequência da corrida do cavalo, na primeira história de Little Nemo.

Sendo pioneiro numa nova arte de contar histórias, McCay fazia várias experiências para tentar construir as narrativas de forma mais eficaz e para tentar verificar qual o melhor tom narrativo: nos primeiros tempos, a combinação de imagens e palavras era feita a partir de alguns diálogos, mas principalmente através de legendas explicativas fora de cada vinheta; depois continuou com diálogos mas as legendas apareciam apenas na vinheta do título, explicando o que iria acontecer; finalmente percebeu que através do movimento que dava à narrativa e aos diálogos, conseguia contar histórias sem legendas explicativas. Também o uso das vinhetas era bastante diversificado e dinâmico (cada vinheta representava uma acção): desde vinhetas quadradas mais convencionais, a vinhetas redondas no centro da página para realçar um evento, e vinhetas rectangulares compridas – estas de dois tipos: as horizontais, fazendo parte do uso calculado de perspectiva e que serviam para mostrar um cenário amplo; as verticais, que acompanhavam colunas, pernas ou andas, com o propósito de transmitir uma noção de elevada altitude.

Outro dos efeitos explorados por McCay era a variação de planos, desde planos de perfil, até grandes planos. O traço de Winsor McCay era um traço nítido, criando formas facilmente perceptíveis. Os fundos eram desenhados com um tom mais preciso (quase realista), enquanto que o rosto das personagens tinha linhas mais simples e até caricaturais (efeito que permitia uma maior identificação do leitor com a personagem), contribuindo também para um efeito de espontaneidade na reacção das personagens. Em termos de materiais usados, McCay começou por desenhar a lápis, experimentando depois com caneta.

O legado de Winsor McCay é de tal forma significativo que mesmo hoje em dia, mais de um século depois da criação das suas primeiras tiras, não deixa de nos espantar o que descobrimos quando revisitamos a sua obra. A influência de McCay está ainda hoje muito presente no que se faz actualmente em cinema de animação e, principalmente, em banda desenhada (quer essa influência seja directa, quer seja indirecta – através de autores contemporâneos cuja obra é influenciada por McCay). À luz das grandes alterações tecnológicas e artísticas que sucederam desde a época de McCay poderemos até olhar para as suas tiras como datadas, no que se refere à apresentação gráfica; mas de certo não conseguiremos negar uma excepcional qualidade artística e uma prodigiosa imaginação que ainda hoje nos faz sonhar.

Comentários

Jorge disse…
Não conhecia nada sobre o Winsor McCay e quero dar os parabéns ao Nuno pelo texto claro e informativo. :)
LandNick disse…
Considero "Little Nemo" uma das melhores obras dos quadrinhos em todos os tempos! O ritmo crescente da história aliado ao cenário fantástico criado pelo autor chega a provocar uma saudável ansiedade pra chegarmos ao fim da aventura! E se prestarmos bem atenção veremos nos desenhos, referências utilizadas posteriormente por vários desenhistas que se seguiram ao Winsor McCay! Simplesmente genial!

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